Quando a moda de baralhos especiais surgiu em 2004 com os baralhos Bicycle Black Ghost e Black Tigers, editados por Ellusionist, não se previa que seria uma jornada de muitos anos, e que envolveria uma grande quantidade de fabricantes, desenhistas, editores e distribuidores deste comum (mas belo) instrumento de jogo, mágicas e previsão de futuro. E essa escalada de novos produtos logo descobriu um novo uso para esses cartões: malabarismo com cartas, hoje popularmente conhecido como cardistry.
E os criadores de novos desenhos se multiplicaram. Fabricantes tradicionais, como USPC e Cartamundi publicaram modelos próprios. Surgiram os editores independentes, que não sendo fabricantes, criaram e desenvolveram novos baralhos do tipo. A parte dos mais tradicionais – Theory 11, Ellusionist, Dan & Dave, HOPC, Blue Crown (hoje já descontinuado), e outros tantos – que impuseram o padrão a estes novos modelos, outros menos pretenciosos, mas nem por isso menos criativos, foram surgindo em diferentes partes do mundo.
Um deles foi Stockholm17, criado em 2018 pelo italiano Lorenzo Gaggiotti.
Sua história é interessante. Formado em Ancona (sua cidade natal) e Milão, em artes visuais, Lorenzo estabeleceu com outros sócios uma empresa de desenho gráfico na Itália. Passados alguns anos ele conclui que seus objetivos pessoais e profissionais não estavam sendo atingidos. A burocracia do país, a dificuldade de financiamento, o difícil relacionamento com clientes, fez com que desistisse do empreendimento e se mudasse para a Suécia. Estabelecido em Stockholm, passou a trabalhar no projeto gráfico de jogos para computador em três empresas do setor.
Neste tempo, a admiração por baralhos e sua aptidão por desenho transformou-se em um hobby para suas noites e finais de semana. Logo essa paixão foi encampando mais e mais seu tempo e, em 2018, ele resolveu se dedicar exclusivamente aos baralhos. Nasceu, assim, a Stockholm17, uma empresa de um só funcionário, como ele mesmo a descreve, mas que conta com vários colaboradores que complementam as habilidades para produção de baralhos especialíssimos!
O nome – Stockholm – justifica-se naturalmente pela sua localização. A adição do número 17 tem várias razões, que Lorenzo explica. Uma delas é estética: o número, segundo ele, combina bem com o nome da cidade: Stockholm seventeen. Outros motivos, mais pessoais: é o dia do nascimento dele, o número da linha do metrô que passa na sua casa, e é um número primo com significado positivo na numerologia. Tem também relação com um icônico vídeo game: City17.
De 2013 a 2023, sua extensa e selecionada produção foi apresentada no livro Anthology (Ref. 1), com quase 700 páginas, em duas versões de capa, muito bem editado (como só ia ser o produto de um excelente desenhista gráfico!). “A must” para quem gosta de desenho gráfico, especialmente quando o produto final são baralhos! São minuciosamente descritas suas criações no período, desde sua concepção à forma final oferecida ao mercado. Além destes detalhes, cada exemplar é apresentado com seus pormenores de fabricação. E como obter os recursos necessários para sua produção, na maioria dos casos, através de projetos pelo sistema Kirkstarter. Um verdadeiro manual de como desenvolver baralhos novos!
Para ilustrar a jornada básica de criação e desenvolvimento dos projetos de Stockholm17 veja um exemplo típico, que interessa àqueles que admiram baralhos como arte ou como instrumentos para fazer mágica.
O caso Ravn
No final de 2015 a mágica (alguns chamam de ‘maga’, as mulheres que fazem mágica...) sueca Caroline Ravn se aproximou de Lorenzo para o desenvolvimento de projetos de baralhos que, além da excelência gráfica, pudessem ser usados no dia a dia dos trabalhos de um mágico profissional. Uma premissa importante do projeto seria apresentar um produto que, a parte da beleza e elegância, fosse visto pelo público como um baralho normal. Evitava-se qualquer estereótipo que o caracterizasse como algo especial, ‘preparado’ para executar mágicas.
Com essa premissa, Lorenzo imaginou que as figuras do baralho deveriam seguir o padrão usado nas marcas mais popularmente utilizadas por mágicos, como a Bicycle. Com base neste critério, procurou modificar detalhes das faces das figuras, mantendo a aparência reconhecida do padrão, evitando criar algo exótico aos olhares dos espectadores. (veja fig. 1)
Fig.1- comparação entre figuras do padrão USPC e as criadas por Lorenzo Gaggiotti.
Quatro modelos compuseram a série Ravn:
- Crimson Red & Petrol Green, de 2016.
- Purple Haze, de 2017.
- Ravn III, de 2018.
- Ravn IIII, de 2020.
Para cada um desses modelos foram desenvolvidos desenhos para os dorsos, curingas e ases de espadas, além de estojos individuais e para dúzias (bricks).
Optou-se por denominar a série como RAVN, seguindo o sobrenome da sua inspiradora. Ravn, em sueco, significa o que em inglês é Raven (corvo), tornando-se o símbolo e ‘leit motiv’ do conjunto. A relativa simetria do termo inspirou a formação de um “ambigrama”, que se tornaria uma espécie de logomarca da série (Fig. 2). Um ambigrama é caracterizado como uma palavra (ou palavras) que podem ser lidas de mais de uma maneira, ou de mais de um único ponto de vista, como o lado direito para cima e o lado direito para baixo. Veja na Ref. 2 -trabalho de Scott Kim, pag. 137.
Fig 2. Evolução do ambigrama Ravn.
Uma dos primeiros elementos específicos a serem desenvolvidos foram os desenhos dos dorsos, para os quais procurou-se um novo formato, mas que não se afastasse muito da estrutura do padrão Bicycle Rider Back, mantendo a premissa de seguir aquilo já acostumado por quem assiste mágica regularmente. (fig.3)
Fig. 3- evolução do dorso da série Ravn.
O Ravn IIII
O último (até esta data) baralho criado para a série, foi o quarto modelo, desenvolvido durante a pandemia de Covid 19. Como de hábito Lorenzo sempre revê detalhes das novas edições de cada série que criou.
Esta versão apresenta vários novos detalhes, que ele descreve em minúcias no seu livro Anthology. Alguns dos pontos revisitados pelo artista:
- No desenho para o dorso – embora mantendo a estrutura básica, teve modificações na parte central. O elemento decorativo acompanha agora a forma da ponta da lança portada tradicionalmente pelo valete de espadas, na forma de um símbolo que lembra a representação gráfica do infinito. (Fig. 4)
Fig.4 – Novo elemento decorativo central do dorso acompanhando a ponta da lança do valete de espadas.
- Modificações no ambigrama “Ravn” – embora mantendo a linha geral, sofreu mudanças em detalhes, tornando-o mais claro. Uma versão compacta foi criada, em uma forma gótica, sem conter longas linhas diagonais. É usada em pontos específicos do estojo e de algumas cartas. (Fig. 5)
Fig. 5 – Novos ambigramas: à esquerda, o modelo normal; à direita, o modelo compacto.
- Ás de espadas – teve um novo desenho, um dos elementos mais detalhados nesta edição. É preciso o uso de uma lente de aumento para identificar todos os detalhes introduzidos:
- As linhas gerais que contornam a forma do naipe central de espadas, nas grandes dimensões, características desta carta, seguem o perfil da seção transversal de um navio antigo.
- O corvo (elemento que nomeia a série), está confinado na parte interna da figura, uma alusão as restrições impostas pela pandemia, época em que o baralho foi concebido e produzido.
- Logo abaixo do corvo, um dodecaedro estelar (usado em outros exemplares da série) é bem destacado.
- No compartimento ao lado direito do corvo está uma sala com um piano, no qual um gato dorme. Outro elemento usado em outras versões da série. Na parede acima do piano lê-se ‘XVII’, indicando o número chave de Stockholm.
- Ao lado esquerdo um móvel (ou um instrumento musical?) é encimado pelo ano de edição do baralho, em algarismos romanos.
- Na base do ás encontra-se um relógio com pêndulo, com um símbolo zodiacal de Gêmeos. Não há um mostrador para o relógio.
- Na parte inferior direita do compartimento onde está o corvo, há uma escotilha fechada, que o próprio criador do desenho questiona se seria um local de escape...
Fig. 6 – detalhes do as de espadas.
- Curingas- Três curingas com diferentes desenhos compõe o conjunto:
- Um deles mostra a figura de um corvo ‘humanizado’. Vestindo um traje de gala longo, pretende representar um ilusionista, objeto principal do baralho. Tem uma carta segura pelo bico. Em suas mãos manipula várias cartas, simulando manobras típicas da arte de cardistry. Em uma caixa aberta atrás dele, um corvo coloca seu bico para fora, portando um ás de ouro, carta que pode ser usada em um revelação feita por quem usa o baralho. Em letras cursivas, a carta indica “Sir Ravn the 4th”, o ilustrado corvo da carta.
- Os outros dois curingas, denominados “The Loop” mostram duas caixas cúbicas, com as faces contendo os símbolos usuais dos naipes franceses. Ilustram o que seriam portais interdimensionais.
- Em uma das cartas, na caixa inferior, o corvo tem a cabeça dentro da caixa; na caixa superior essa cabeça aparece, segurando um fio que sustenta a tampa da caixa inferior, sugerindo a ambivalência do portal multidimensional.
- Na outra carta curinga, a caixa inferior está fechada e na superior o corvo surge portando uma carta com a mão esquemática de pontos para leitura das mãos. No cubo / caixa inferior uma carta dois de paus pode ser usada em revelação pelo mágico.
Fig. 7 – Curingas usados no baralho.
Os estojos foram produzidos por Arlington Press, do Texas (EUA). Uma série especial, que compôs alguns dos conjuntos ofertados a quem participou dos fundos para o projeto, foi designada por Ravn X, produzida pelo fabricante chinês WJPC, com estojo de Carat Case Creations, também da China.
O projeto foi financiado pelo sistema Kirkstarter, em uma campanha de 30 dias. Vários tipos de conjuntos foram compostos, com baralhos e acessórios (como moedas e braceletes). A meta de 200.000 SEK (coroas suecas), equivalentes a cerca de USD $ 22,000.00, foi superada em 508%! Obteve-se um total de 916.000 SEK, equivalentes a cerca de USD$ 103,000.00.
Mesmo com este resultado positivo, o projeto impôs vários desafios de produção e de logística de distribuição, tendo em conta a pandemia de Covid 19.
Conclusão
A ‘moda’ dos baralhos que passei a denominar de “fancy playing cards”, parece ainda ter resistência por muitos anos. Para alegria dos amantes destes cartões coloridos, que já estão conosco no seu sexto século, desde que foram criados no final do século 15. Um dos produtos industriais mais antigos, que ainda nos faz companhia, como instrumento de jogo, ilusão e habilidade.
Stockholm17, criada e mantida pequena na sua estrutura, nos brinda com produtos belíssimos. Criatividade, cuidado em detalhes e visão empresarial tornam o negócio em destaque no mundo dos baralhos.
Seu produto Ravn, em sua versão IIII, destacado neste artigo, junta este cuidado de maneira exemplar.
Vida longa à Stockholm 17!
Cláudio Décourt (Ruberdec)
Abril de 2025
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Bibliografia
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GAGGIOTTI, Lorenzo. Anthology: A 10-Year Journey Into the Creative Process of Designing Custom Playing Cards. Stockholm, Stockholm17, 2023. 685 p.
-
SECKEL, Al. Master of Deception. New York, London, Sterling, 2004. 320 p.
Comentários
Parceria perfeita seria um baralho da Koji em parceria com o Stockholm17!
ótimo artigo como sempre
nossa muito interessante este detalhe do dorso
Esse detalhe do dorso é genial, muito bem observado. Sempre muito completo
Olha esses Jokerss que coisa linda!!!
Que interesssnte essa figura 4
Todos os baralhos do Stockholm são cheios de detalhes e muito belos
Uma partilha de grande qualidade. Obrigado!
Sou fã deste blog, ótimo artigo
tenho o requiem e notorious gambling frog, comprei na koji são lindos demaiss