Um clássico sendo um clássico: o “Atomic Deck”

Um clássico sendo um clássico: o “Atomic Deck”

Postado por Cláudio Décourt

Um clássico sendo um clássico: o “Atomic Deck”

 

Na década de 1950, o mágico inglês David Berglas (1926 – 2023), célebre por seus programas na televisão britânica, apresentou aquele que se tornou um dos mais famosos números de mágica com baralhos. Seu efeito, simples e direto: uma carta livremente escolhida por um espectador era encontrada exatamente em uma posição do maço, escolhida livremente por alguém.

Provavelmente de forma planejada, Berglas fez nascer um clássico entre os efeitos de cartomagia. Podemos caracterizar como ‘clássico’ o efeito popular, com uma história relativamente longa, e que é executado por diferentes métodos, por diferentes artistas.

A incredibilidade daqueles que assistiram as primeiras apresentações do número criou uma lenda sobre o efeito. Designado convencionalmente em inglês como “Any Card at Any Number – ACAAN” – que seria em português ‘Qualquer Carta em Qualquer Posição’, ou ‘Carta ao Número’, como é conhecido em espanhol, com as devidas correções gramaticais –, nesta apresentação é citado como “Berglas Effect”. Foi, já à época, referido como o “Santo Graal” dos efeitos mágicos, algo místico, um objetivo inalcançável de todos os números mágicos.

Na verdade, há referência a este efeito já no famoso livro de Henri Decremps ‘Testament de Jérôme Sharp’, editado originalmente em 1786 (ref. 1). Mas a versão de Berglas, e o destaque motivado pela popularidade dele, fez com que o efeito renascesse para o público mágico.

Passou a ser exibido por vários mágicos, usando vários métodos e técnicas de apresentação. Lojas e editores de produtos mágicos criaram várias versões para execução do efeito. Livros, com vários graus de profundidade, cuidam do tema (veja ref. 2 e 3 para alguns exemplos).

Nessas várias versões são utilizados baralhos normais, baralhos especiais clássicos (como baralho ‘rádio’ e suas variações, baralhos marcados, etc.), além daqueles especialmente concebidos para a realização do efeito.

ACAAN ou Berglas Effect?

 

Uma discussão semântica e conceitual pode ser feita com relação a designação do número. Talvez uma discussão de cunho acadêmico, mas que anima alguns!

David Berglas é o coautor, com Richard Kaufman, do livro “The Berglas Effects” (ref. 2), com prefácio de Juan Tamariz e posfácio de Max Maven. O título do livro, indicando o efeito no plural, apresenta vários possíveis métodos usados para se obter o efeito desejado. Quando, no entanto, dá detalhes históricos sobre as apresentações de Berglas quando restritas a outros colegas mágicos ou pequenos grupos, fora de suas apresentações públicas, destaca que, nelas, Berglas sempre pede para que alguém confirme que a carta escolhida está na posição desejada, sem nunca tocar no baralho! E isso é que caracteriza o que é, realmente, o “Berglas Effect”: um ACAAN sem que o mágico toque no baralho!

Em suas apresentações profissionais, com vários espectadores, como exibido nos três DVDs que acompanham o livro, Berglas mostra ACAAN’s usando métodos de manipulação, ordenação de cartas e artimanhas psicológicas – amplamente explicados no livro – nos quais o mágico pode controlar, de alguma forma, a escolha e o posicionamento da carta em determinado local. São ACAAN’s não Berglas Effects, na sua concepção precisa!

Na introdução do livro citado, Richard Kaufman apresenta o que deve ser entendido pelo Berglas Effect, na sua apresentação original: “... o Berglas Effect é uma quimera... não existe de forma concreta como a maioria dos outros truques de cartas. É totalmente diferente de qualquer outro efeito com cartas, porque não há explicação convencional para ele”.

Em termos práticos: uma lenda.

Um novo ACAAN ou seria uma nova versão do Berglas Effect?

 

Uma das mais importantes convenções de mágicos é realizada na cidade inglesa de Blackpool. Caracteriza-se por ser, especialmente, um evento de “Dealers” (vendedores, produtores e criadores de efeitos mágicos). Vários negócios voltados a produção de material para mágicos aguardam Blackpool para lançarem seus produtos.

Em 2025, um dos sucessos de Blackpool foi o lançamento do “Atomic Deck”. Criado por Craig Petty, com a ajuda de Lloyd Barnes e Peter Turner, produzido por “Murphy’s Studio”, importante distribuidor americano para o mercado de atacado de mágicas. Acompanhando a designação do efeito original, foi referido como o “Holly Grail” de todos os números de mágica.

A reação ao lançamento foi ‘explosiva’, dando crédito à designação do baralho!

Várias resenhas, no YouTube, elogiaram e, em muitos casos, execraram o baralho. Descritos por alguns como a melhor criação do meio mágico nos últimos tempos, levou outros a considerarem a pior delas! Os primeiros comentários foram, principalmente, sobre dúvidas sobre como o baralho funcionava. Ainda não distribuídos ao mercado à época, causaram perplexidade sobre como era possível a execução do efeito de forma tão limpa e direta, de certa forma seguindo as dúvidas criadas quando David Berglas ressurgiu com o efeito, anos atrás. Logo, teorias ainda por ilação, surgiam, muitas sem o conhecimento exato do que era o Atomic Deck.

O que se comenta sobre o Atomic Deck?

 

Vários comentaristas do baralho se mostraram intrigados sobre o efeito quando viram as primeiras apresentações divulgadas pelo You Tube, sem ainda conhecerem o método utilizado. Posteriormente, com o baralho em mãos, apresentaram restrições ao baralho, indicando deficiências em sua qualidade de produção.

A discussão dessas opiniões contrárias favoreceu muito o marketing do efeito. Aplica-se aqui a máxima, usada por vários políticos, de que é importante “falarem mal, mas falarem de mim!” Ao que se sabe o baralho tem tido vendas expressivas, sendo as primeiras edições esgotadas em vários negócios mágicos.

Não se pode negar, por outro lado, que atualmente a internet e as redes sociais trouxeram enormes oportunidades de discussão de efeitos mágicos, o que não ocorria no passado. Raramente obtínhamos comentários sobre efeitos comercializados. Isso abriu um espaço enorme para críticas, que sempre serão positivas e negativas.

Comentamos a seguir algumas dessas observações.

Sobre o baralho.

 

Utiliza-se um baralho especialmente concebido para o efeito, seguindo um tipo genericamente indicado em inglês como ‘stand-alone’, específico para um número. Pessoalmente designo estes tipos por “DOT” (Deck for One Trick- baralho para um efeito). Sobre ele, destaque-se:

  1. Embora seja um baralho produzido por um fabricante de qualidade superior, não é comum entre esses, nem segue a marca de baralhos mais populares, especialmente o clássico Bicycle. Isto pode gerar alguma suspeita para alguns espectadores e, especialmente para aqueles hobbistas e aficionados de mágica. Nada tão importante se o público para o qual se apresenta o número for de leigos, pouco acostumados com apresentações de números de mágicas com baralhos.
  2. O fabricante do baralho (Legends Playng Card Co.) fornece um baralho normal com o mesmo estojo e marca usada no Atomic Deck, mas adverte no seu site que as cartas ainda apresentam dorsos diferentes do utilizado no Atomic. Informa que, em breve, irá produzir baralho que acompanha o Atomic em todos seus detalhes, permitindo assim, a eventual troca do baralho especial por um normal, e vice-versa. Por outro lado, há formas de se introduzir o baralho mesmo incomum em uma apresentação sem que gere suspeitas. Uma delas é sugerida por Roberto Giobbi (ref. 4): o mágico apresenta baralhos de diversas marcas, pedindo aos espectadores que escolham aleatoriamente os baralhos que desejam ser utilizados por ele. Vários desses baralhos são preparados para execução de números específicos que, quando escolhidos permitem sua apresentação. Essa artimanha dá o ar de imprevisibilidade e de confiança na legitimidade do material utilizado.
  3. Para atender ao método desenvolvido para execução do número as cartas são mais finas (menor espessura e gramatura) que o usual, e têm sua textura lisa, similar a baralhos plásticos (se é que não são, realmente, fabricadas em material plástico). Essa característica torna as cartas mais flexíveis do que as de um baralho comum. Isso, sem dúvida, chama a atenção de quem está acostumado a manusear baralhos, como mágicos e jogadores. É, portanto, uma restrição ao ser ofertado livremente para inspeção, especialmente deste público mais seleto. Mas, verifica-se que, quando espectadores menos acostumados, eventualmente, manuseiam o baralho para um rápido exame, não notam nada de anormal.
Sobre a apresentação e o método de execução

 

  1. Os detratores do baralho enfatizam que nem todas as cartas podem ser encontradas em qualquer número escolhido. De fato, essa é uma limitação inerente à concepção do método. É explicada em detalhes nos tutoriais. Informa-se que apenas cerca de 90% das cartas e posições são atendidas. Puristas, fazendo análises precisas, concluem que, realmente, apenas 70 e pouco porcento das cartas podem ser localizadas em posições factíveis. Isso, mesmo sendo verdade, não desqualifica o número. Como o próprio criador explica, pode ser resolvido pedindo-se para o espectador fazer outra escolha, recomendando que isso tornará a opção ainda mais aleatória, eliminando qualquer viés de uma alternativa que poderia conter algum fator de influência. Craig Petty mostra em vídeo, ainda, que o próprio Berglas quando apresenta ACAAN (não o Berglas Effect...) para uma plateia ampla, usa o artifício de pedir aos espectadores que, para garantir a aleatoriedade da escolha, troque a que fez! Além desta saída, a utilização do celular, como comento nos itens 3 e 4 abaixo, resolve de maneira muito limpa a questão.
  2. Quando a carta escolhida fica em uma posição do meio ao final do baralho a quantidade de cartas que sobram é, muitas vezes, maior do que a seria verificada se tivéssemos um baralho normal. Esse detalhe, embora apenas notado por quem está familiarizado com baralhos (como mágicos e jogadores), pode passar despercebido por quem não o conhece. De qualquer forma é uma deficiência do método, mas que pode ser disfarçada mantendo-se as cartas que sobram na mão do mágico sem serem explicitamente mostradas, e logo misturadas com o restante do baralho.
  3. Em sua concepção é utilizado um celular. Dois métodos – um usando o celular do mágico, e outro usando celulares dos espectadores - são apresentados. Ambos podem ser usados independentes, a critério do mágico. A utilização do celular foi objeto de restrições de comentadores e usuários, que dizem não utilizar o aparelho ou não gostar de associar efeitos mágicos com celulares. Embora tenha, pessoalmente, restrições à moda atual de usar extensivamente (e em alguns casos abusivamente!) celulares em números de mágica, acho que, neste caso, há justificativa que limpa o eventual uso de aplicativos como solução para realização de impossibilidades que, claramente, são nada mais que efeitos provocados por programas desenvolvidos para dispositivos eletrônicos. Como dizia Arthur C. Clark, muito do que se desenvolve tecnologicamente no mundo moderno parece mágica!
    De qualquer forma, os desenvolvedores do baralho criaram um método usando alternativas sem uso dos celulares, que tornam o número ‘celular free’.
  4. O efeito pode ser apresentado em close-up, salão (parlor) ou palco. Embora se adeque bem aos três locais, acredito que o método é particularmente eficaz para palco e salão. Me explico: quando se usa a alternativa do celular dos espectadores, pode-se abrir a consulta a todos que assistem a apresentação. Isto ‘limpa’ o método e resolve de maneira eficaz a restrição explicada no item 1, acima.
  5. Para quem adquirir o número são oferecidos vários tutoriais, simplificados e ampliados, com todos os detalhes necessários para executar o efeito de maneira precisa e simples. Embora se note, especialmente no tutorial mais extenso, um caráter auto laudatório dos apresentadores (criadores do método...), oferece-se bastante informação, detalhes e dicas que complementam as explicações, ofertando material para aprimorar as apresentação.

Alguns críticos do Atomic Deck, antes de terem seus exemplares em mãos criticaram o manejo do baralho, indicando que nas apresentações de Craig Petty ele constantemente levava os dedos à boca. Entenderam que este ato, umedecendo os dedos, era a forma de executar o manejo das cartas. De fato, esta prática, muito comum entre alguns mágicos, especialmente mais antigos, é de extremo mal gosto, além de anti-higiênico, especialmente em épocas recentes de pós pandemia.

E Craig se desculpa disso em outros vídeos, explicando ser um hábito que adquiriu há anos e que, apesar de ter por vários meios tentado eliminar, não tem tido sucesso. Sem entrar no mérito da sua força de vontade em alterar esse hábito, sem dúvida pouco elegante, não há, no entanto nada na execução do número e na utilização do baralho que necessite ou justifique esse procedimento. Vemos aqui um ataque pessoal ao criador do número, que acaba por influir, pelo menos inicialmente, na qualidade do efeito, sem, no entanto, ter qualquer ligação com a execução do número.

Conclusão: em busca do truque perfeito

 

O ideal de muitos mágicos seria inventar um número que não requeira nenhum artifício, artimanha ou subterfúgio (conforme enuncia Erdnase...), e que mostrasse algo impossível. Em outros termos, que fosse um milagre! Mas nós, pobres mortais, não temos (pelo menos por enquanto) essas faculdades...

Assim, conseguimos apresentar impossibilidades, mas restritas a métodos factíveis e humanos. E a arte da mágica está exatamente nisso: artifícios, artimanhas e subterfúgios; isso bem usado e, principalmente, bem apresentado, faz com que nossa plateia se encante, pensando que fazemos milagres, embora sejamos apenas mortais limitados.

Nenhum número de mágica é perfeito se tomamos o conceito de milagre como paradigma. Sempre haverá falhas; sempre haverá o ‘truque’. E, disfarçar essas falhas e truques é que torna nossa arte tão particular e especial.

O Atomic Deck não é a única maneira de se fazer o ACAAN. E nem a melhor, genericamente falando. Mas é uma maneira eficaz, considerada a situação, público e forma pela qual é apresentada. A forma mais perfeita será sempre aquela que cada mágico encontrará para fazer sua plateia entender que aquilo é impossível de ser feito por métodos normais.

E, tomando o conceito básico do que se chama ‘Berglas Effect’, o Atomic Deck não atende aos requisitos que levam a esta denominação. Trata-se ‘apenas’ de outra, entre as várias versões de ACAAN oferecidas no mercado. Um Santo Graal declarado, mas não real!

Designado e classificado como convier aos seus criadores, podemos especular sobre o que pensaria David Berglas deste Atomic Deck. Independentemente do que ele avaliasse, trata-se de uma forma interessante de realizar este clássico. Cada mágico vai utilizá-lo ou não, em função de sua experiência e gostos pessoais.

Cláudio Décourt (Ruberdec)

Maio de 2025

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Bibliografia

  1. DECREMPS, Henri. Testament de Jérôme Sharp: Professeur de Physique amusante. Paris, editado pelo autor, 1786. 356 p.
  2. KAUFMAN, Richard & BERGLAS, David.  The Berglas Effects.  Washington (DC), Kaufman and Company, 2011. 394 p.
  3. HARTMAN, J. K.   Caan Craft.  Schenectady, Bean’s Magic, 2010. 85 p.
  4. GIOBBI, Roberto.  The Art of Switching Decks: A Guide for the Beginner and the Expert.  Seattle, Hermetic Press, 2013. 153 p.

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Comentários

  • Koji, trás este livro : The Art of Switching Decks

    Comentado por Khris
  • vi muitos no YouTube xingando este efeito, acredito que o principal motivo é a maneira como venderam falando que se tratava de algo realmente impossível.

    Comentado por pedro nunes
  • O melhor review que já vi

    Comentado por Tom52

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